sexta-feira, 22 de junho de 2012

A Partida (Okuribito)

"A Partida" (2008) dirigido por Yôjirô Takita conta uma linda história sobre amores, mortes e ritos de passagem. O tema é a morte e é tratado com muita dignidade e com todo o belo aparato ritualístico típico da cultura oriental. Uma obra singular, ora buscando o humor, ora flertando com um profundo sentimento.
Daigo é um jovem violoncelista desempregado. Sem confiança em seu próprio talento, desiludido e endividado por ter comprado um violoncelo, ele propõe como solução a sua mulher mudarem-se para a cidadezinha do interior do Japão, onde nascera. Com espírito otimista sua esposa é uma Web Designer, aceita e apóia a decisão do marido. Daigo ao contrário do que esperava se sente livre de uma obrigação ao vender seu violoncelo. Aquele poderia não ser seu verdadeiro sonho. Em busca de um emprego qualquer, logo consegue, e meio à contra gosto torna-se um "preparador de cadáveres", ou seja, o profissional que se dedica a maquiar e arrumar defuntos para que sejam enterrados da maneira mais digna possível. Porém, o envergonhado Daigo não consegue contar a verdade à sua esposa Mika, que acredita que o marido trabalha numa espécie de agência de viagens. Daigo se torna um profissional "Noukan" (ritual de acondicionamento dos mortos), preparando-os para o enterro ou cremação.
"Noukan" é a tradicional cerimônia japonesa de colocar o cadáver no caixão. Primeiro o corpo é coberto para que seja retirado o quimono ritual, sem que a pele do morto seja exposta. Procede-se o tamponamento dos orifícios naturais, depois se inicia a limpeza do corpo que simboliza a eliminação do cansaço do mundo, da dor, do desejo e também o primeiro banho para o novo nascimento. A musculatura do rosto é acomodada e a postura das mãos é arrumada. A roupa é novamente colocada com extrema delicadeza e cuidado. Depois dessa preparação o rosto é barbeado no caso dos homens e as mulheres penteadas e maquiadas. Tudo é feito na presença dos familiares, com movimentos precisos e delicados. O ritual é geralmente realizado em um cômodo especial, onde haja um altar com flores e o retrato do morto. Os Noukan trabalham com muito respeito aos mortos e a dedicação torna o rito ainda mais bonito. Eles auxiliam a última viagem e a jornada do morto para a entrada na próxima vida.
O protagonista foi obrigado pelo seu pai a aprender música, fora criado sozinho por sua mãe desde os seis anos, depois que ele os abandonou. Toda vez que lembra de sua história se sente triste e vem à tona a sua criança ferida, da qual não recorda o rosto do pai. Ele jamais poderá perdoá-lo por isso, guarda mágoas e rancores. A música renasce dentro dele quando começa a tocar seu velho instrumento, nesse ínterim encontra a pedra que seu pai lhe dera quando era pequeno. 
A esposa de Daigo acaba descobrindo tudo sobre suas mentiras e despreza seu trabalho pedindo que o deixe; Daigo tem que fazer uma escolha, mas já está envolvido emocionalmente com sua profissão. Ele começa a se orgulhar de si e de seu papel de intermediário entre a vida e a morte, entre o falecido e sua família. Através do contato com a morte ele descobre o significado do viver. Chamado pela morte de seu pai em uma cidade vizinha, demonstra muita raiva e dor, extravasando todo seu pesar. Depois de tantos anos o reencontro acontece com seu pai morto, e assim ele resolve acondicioná-lo. Sua dor se transforma em compaixão e amor, tocando o corpo de seu pai, limpando, purificando e cuidando, pôde reconstruir o seu rosto, dando a ele sua identidade perdida há tantos anos, ressignificando seu passado, curando suas feridas, transformando-as em cicatrizes sagradas. Em sua mão encontrou a pedra que ele ainda menino o havia dado, descobrindo que afinal o pai nunca o esquecera. Quando no final sua esposa lhe entrega a pedra ele a devolve entre as mãos e a coloca sobre a sua barriga em um lindo gesto simbólico.

"A Partida" é um filme completamente poético, a morte representa transformação, além de ser inevitável, é necessária para que haja espaço para o novo. A ideia de morte nos traz para a espiritualidade, deixando que nos desprendamos do materialismo, e assim chegando mais próximos da natureza humana. O desapego pelas coisas é o primeiro passo para a aceitação da morte, desapego ao nosso ego (desejos) e enfim, à carne. O ser humano vive ignorando a morte achando que nunca virá para si, vive como se fosse eterno, o que não passa de medo do desconhecido, esse distanciamento faz com que não entendamos seu verdadeiro propósito, talvez, a morte seja uma passagem para um novo estágio, um portal do qual todos iremos passar um dia, a morte é o fim do desapego do ego, e tudo que acumulamos em vida, simplesmente se vai.
A trilha sonora casa com um roteiro cuja beleza é imensurável, lidar com os mortos pode parecer para muitos algo impuro, mas Daigo nos mostra o quão digno e reconfortante é. Incrível como um gesto delicado e dedicado pode mudar um modo de pensar.

A história é sincera e nos faz sentir uma torrente de emoções em duas horas de projeção. Todos deveriam assisti-lo para que pudessem ter uma noção mais bonita do conceito da morte, já que muitos desconhecem, ignoram, e outros apenas vivem sem se questionar. É uma bela forma de chegarmos mais próximos de algo que temos tanto medo. A morte é tratada de modo natural e com uma sensibilidade única. A sequência na qual Daigo toca seu violoncelo em meio a paisagens bucólicas numa série de cortes temporais da trama, sem dúvida, é uma das cenas mais lindas. Sufocante e melancolicamente sublime.
Em sinal de respeito como nos hábitos dos japoneses, me curvo diante a este longa. 

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